O dia ainda não tinha amanhecido quando eu, saí de Navarrete. Caminhar sem ter a
presença do sol já tinha se tornado uma rotina. Estávamos ainda no mês de abril e as temperaturas pela manhã eram bastante frias, o que nos obrigava a fazer um bom alongamento para aquecer a musculatura. Mas depois de ter esvaziado a bexiga nas botas do russo tudo o que mais queria era distância do albergue de Navarrete. Meu espírito “moleque-revanchista” gostaria de ter estado presente para assistir a cena de ver o russo revoltado, mas tinha a exata noção do alto risco que estaria correndo. Dei-me por satisfeito e vingado pela noite anterior, mas o corpo estava moído e ainda
não totalmente recuperado da contratura muscular. Além disso, queria agradecer pessoalmente o carinho que me foi dispensando pelo José Luis e Acácio que se colocaram à minha disposição para qualquer ajuda que precisasse, inclusive de ficar em Ventosa no albergue San Saturnino me recuperando. Mas e o meu orgulho idiota onde ficaria? A adrenalina do querer caminhar falou por si só. Fui andando e com a própria caminhada a musculatura foi aquecendo. Segui adiante e embevecido pelas belezas que o
Caminho nos mostrava percebemos que um ou outro peregrino por quem passávamos tinham também alguns problemas de ordem física. Assim, acabamos por esquecer dos nossos. Com isso, retomamos o nosso dia-a-dia de caminhada que consistia em ver o Miguel andando sozinho uns cem metros adiante com uma sacola de supermercado contendo uma dezena de magdalenas que iam sendo devoradas
ao longo da etapa. Ele completamente desligado do resto do mundo, enquanto eu seguia no
silêncio repensando a vida, e vez por outra cantarolando velhas canções recordadas para minimizar a solidão e matar um pouco o tempo.
Nos desviamos do Caminho para visitar os amigos José Luis e Acácio no povoado de Ventosa que fica situado no alto de uma suave colina. O trecho entre Navarrete e esta última cidade é curto, aproximadamente cinco quilômetros.
Ao chegarmos tomamos um bom café com bastante calma e percebemos que o albergue já estava vazio. Convidado pelo Acácio fizemos um city-tour nas instalações do albergue que parecia ser bastante confortável e acolhedor. Com isso, consumimos um precioso tempo. Mais uma vez o Acácio
insistiu perguntando se estava tudo bem comigo, ao que respondi positivamente. Hora de despedida, esse é o pior momento. Deixar para trás um amigo brasileiro. Mas vida de albergue é assim mesmo, ponto de chegada é também ponto de partida.
Entrando em Nájera o estômago deu sinal de vida. Quando íamos atravessar a ponte sobre o rio Najerilla observamos que vinha um cortejo singular. Vários habitantes da cidade vestidos com roupas medievais, portando animais selvagens domesticados, tais como falcões e corujas reais. A fome falou mais alto que a curiosidade e ao transpormos a ponte elegemos um local aprazível bem à sombra de um salgueiro
frondoso. Sentamos na relva bem na margem do rio para lanchar. Aproveitamos para fazer um carinho nos pés e os colocamos de molho nas águas geladas do rio. Foi um bálsamo. Ficamos ali por alguns minutos aproveitando o calor suave do sol que estava em todo o seu esplendor. Deu até para tirar um curto cochilo embalado pelo barulho do rio raso batendo nos seixos.
Quando voltamos a caminhar ainda tínhamos que atravessar a cidade e passar pelo albergue para um justo e merecido carimbo. No percurso vimos um pouco daquela festa medieval com direito a arco e flecha, javali assado, muita música e brincadeiras. Lembrei-me muito das nossas festas juninas, face a animação não só das crianças como também dos mais velhos.
Ao tentar retomar o Caminho encontramos alguma dificuldade para identificar as setas amarelas em função do congestionamento de pessoas e da existência de barracas, até que avistamos um morador vestido como se fosse o bobo da corte, que segundo o Miguel, em espanhol chama-se bufón e
ela inocentemente perguntou:
– Como retomamos o Caminho?
E ele respondeu apontando.
– É para lá.
Quando começamos a caminhar ele riu. Foi assim que percebi que estava nos enganando. O Miguel quase que imediatamente voltou para brigar com o sujeito, mas eu lhe disse:
– Você não entendeu. Ele incorporou a sua personagem, está encenando aquilo que as pessoas esperam dele, ou seja, fazer palhaçadas e colocar pessoas em situação constrangedora. Fizemos parte da festa. Vamos nessa. – Completei. E acabamos por beber um bom gole de vinho no gargalo de uma garrafa que nos foi oferecida pelo bufón.
O dia entardeceu e o vermelho do céu na linha do horizonte denunciava que nosso objetivo de terminar a etapa do dia em Azofra podia fracassar, pois o guia indicava ser um albergue com poucas acomodações. Ainda assim decidimos correr o risco de ficar lá mesmo, porque caminhar até Santo
Domingo de la Calzada não era uma boa alternativa e também porque em Cirueña sequer havia albergue. Deixamos então o acaso cuidar do nosso final de dia.
Caminhamos um bom tempo entre os vinhedos até que chegamos ao nosso destino, tendo sido recebidos pela Sra. María Tobia, de aparência extremamente frágil, mas dotada de um vigor de causar inveja a qualquer adolescente. Nossas suspeitas se confirmaram. O albergue estava lotado.
Em um primeiro instante María Tobia nos disse que em frente à praça havia um outro hostal-albergue. Podíamos
tentar vaga ali, caso contrário voltaríamos. Quando chegamos ao refúgio La fuente o hospitaleiro nos disse que não havia mais lugar. O jeito era voltar. Quando entramos no albergue, María Tobia já tinha arrumado dois surrados colchonetes para nós e indicou a varanda da igreja que serviria de acomodação. Miguel conseguiu um lugar embaixo da mesa da cozinha, dormindo junto com três noruegueses. Não sabia quem estava em situação pior, eu ou o Miguel.
Antes de anoitecer fizemos uma faxina no nosso “cafôfo” e fomos tomar um banho para relaxar. Não havia como preparar comida no albergue pela precariedade das acomodações. Optamos por um menú del peregrino em um modesto restaurante em frente a uma tienda onde fizemos as provisões do dia seguinte.
O jantar não era nenhum manjar dos deuses, mas para a fome que nos acometia bastava. A comida feita à base de muito azeite era sempre uma incógnita no dia seguinte. O vinho também não era nenhuma preciosidade, mas considerada a circunstância em que nos encontrávamos era o elixir-combustível-calmante para transpor aquela noite que prometia ser longa.
Quando voltamos à igreja havia mais uns doze ou quinze colchonetes em sentido paralelo aos nossos. Se não era um alívio pelo menos era reconfortante saber que estávamos compartilhando as mesmas dificuldades que outros peregrinos. Mas e o frio? – pensei eu. A igreja ficava na parte alta do
povoado e completamente exposta ao vento. Sobre as nossas cabeças um pequeno telhado a nos proteger, mas em caso de chuva a situação iria ficar insustentável.
Sentado no colchonete tirei a rolha da garrafa de vinho que
cabia ao Miguel e comecei a beber pausada e solitariamente no gargalo junto com um resto de pão que sobrou da janta. Fiquei admirando as estrelas que pairavam à minha frente e que pareciam estar ao alcance das mãos. Havia um céu muito claro iluminado pela lua nova, talvez em decorrência de não haver poluição. A nitidez da imagem de São Jorge na lua me trouxe de volta imagens de criança.
Entre um gole e outro comparei os confortos que tinha na minha casa e a situação momentânea que estava vivenciando. De que me valia o conforto e o calor de uma cama
macia se meu coração não estava em paz?
Melhor ter o desconforto material, mas estar feliz e em paz com a minha consciência e em harmonia com o mundo em si.
Até então durante toda a minha vida familiar vivia em função das necessidades que a sociedade me impunha. Aparentar uma condição social, ter saldo bancário, carro do ano como prova de sucesso profissional.
A garrafa de vinho estava na metade, já todos dormiam e alguns até roncavam. Vi uma estrela cadente e fiz um pedido, sem acreditar muito se seria atendido ou não.
Terminei os últimos tragos do vinho de mesa barato, que começou a me dar sono e resolvi dormir, mas
antes disto, achei razoável e prudente fazer um xixi para aliviar a pressão etílica. Ao dirigir-me para o albergue vi que a porta estava fechada. Isso era óbvio, pois algumas pessoas dormiam na cozinha. Com a cidade toda descansando fiz o meu xixi em uma árvore em frente à igreja e me enfiei dentro
do saco de dormir. Olhei para o relógio e percebi que passava da uma da madrugada. Fazia um frio incômodo. Só que o meu saco de dormir era para um nível de conforto até cinco graus positivos. Mas sob o efeito do calor gerado pelo vinho, e embalado pelo teor alcoólico, dormi rápido. Não me lembro de ter sonhado. Acordei com a sensação de ainda estar descansando e com a visão meio turva em função do fino nevoeiro, mas sentindo o corpo muito bem aquecido. Achei, em um primeiro momento, que tinha morrido de frio e que eu estava vendo a mim mesmo, naquilo que algumas pessoas diziam ser uma “viagem astral” ou algo assim. Fiquei com medo de pensar em fazer algum movimento, meu corpo não
responder e confirmar que tinha ido mesmo para o “beleléu”.
Será que a bebida ainda estava fazendo efeito? Sentia minha barriga, pernas e todas as partes do corpo pesando muito dentro do saco de dormir. Mas o que me causou algum pânico foi perceber que, sem esboçar nenhum movimento, algo se mexia involuntariamente dentro de mim. Aquele algo caminhava literalmente sobre o meu peito ao mesmo tempo em que pisava suavemente sobre meus pés e pernas. Senti-me mal em perceber que mesmo momentaneamente meu corpo não obedecia a minha vontade. Era uma coisa estranha!
De repente começaram a sair gatos de dentro do saco de dormir. Não eram poucos como dois ou três. Eram seis! Sem a menor cerimônia eles iam saindo organizadamente pela abertura do saco como se nada tivesse acontecido.
Atônito e pasmo vendo aquela cena insólita sem entender
nada e ainda com muito sono, para ter a certeza de que aquilo não passava de um pesadelo, acordei o peregrino que estava ao meu lado aos solavancos. Resolvi me levantar e dar um fim naquela situação.
Conferi no meu relógio, eram seis e quinze de uma manhã e ainda parecia noite. Dirigi-me para o albergue que tinha uma arandela acessa acima da porta já entreaberta, sinal de que havia movimentação no seu interior, e fiz minha higiene matinal sem incomodar aos peregrinos que ainda estavam
dormindo nos seus beliches. Retornei à igreja com a certeza de que aquela cambada de
gatos foi responsável pela manutenção do meu aquecimento corporal naquela noite em que dormimos praticamente ao relento. Era hora de botar o pé na estrada. Mas os gatos ainda
iriam me pregar mais uma peça durante o nosso caminhar….